sexta-feira, outubro 24, 2008

Proposta Entorpecente

Sala de aula. Último período. A professora recolhe sua caixa de giz e diz: "Então a proposta de produção de texto fica para a próxima semana, certo?". Um sim coletivo é respondido entre bocejos. A professora mal havia alcançado o corredor e os alunos já estavam de pé, rabiscando a lousa e conversando aos berros pelo simples prazer de ferir meus tímpanos. Me virei depressa para encarar o rapaz da carteira de trás, antes que ele se juntasse a seus amigos barulhentos e exclamativos.
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Balbuciei algo sobre minhas idéias para o texto. Ele concordou com meus argumentos, com aquela expressão fria e cética que endurecia seu rosto sempre que o momento se tornava íntimo demais. Continuei tagarelando enquanto tomava um verdadeiro porre de coragem. Meus pés sambavam impacientes. Meus dedos deslizavam pelos meus cabelos uma vez e de novo. De repente, eu não sabia o que fazer com minhas mãos. Isto me desconcentrou e eu apertei meus lábios. Agora tudo era um borrão e eu só queria sair correndo dali. Ao invés disso, congelei. Os lábios dele estavam movendo-se, sua voz preenchendo o silêncio que eu havia deixado. Seus olhos nunca de fato tocavam os meus, apenas passavam ligeiros pelo meu rosto e depois desviavam para suas próprias mãos sobre a mesa. Reparei que ele estava tão desconfortável com as poucas polegadas que nos separavam quanto eu. Mas o que havia de errado em olhar para mim? Eu adorava olhar para ele. Quando seus olhares não acorrentavam os meus, eu tentava decorar seus traços e imaginava a textura que sua pele teria em minhas mãos carinhosas. A vida poderia ser apenas isso, olhar para ele. Seu desconforto ainda me incomodava, me aborrecia. O que ele temia encontrar em meus olhos, afinal? Minhas palavras eram ensaiadas, mas meus olhos jamais mentiriam para ele.
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O silêncio retornou, constrangedor dessa vez. Ele ergueu os olhos e me encarou, seu rosto era ilegível. Enquanto seus olhos carregavam os meus, num instante infinito, sorri um sorriso torto, envergonhada, meus lábios partiram-se. Agora! Mas ficaram ali partidos e silenciosos. Seus ombros curvaram-se enquanto ele aproximou seu rosto do meu, com olhos curiosos. Seu hálito soprava quente e doce em meu rosto. Eu precisei me lembrar de respirar.
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Seria fácil agora, sem grandes esforços de ambos os lados. Todas as células do meu corpo sabiam o que fazer. Cada centelha do meu ser sabia o que eu queria. Eu já não precisava saber o que fazer com as minhas mãos - elas estavam fadadas a deslizar pelos cabelos dourados do dono daqueles olhos que me aprisionavam, que me desejavam com urgência de repente.
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"Então?", ele disse, permitindo reticências.
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Eu sinto muito. Eu fui uma tola. Eu senti tanto a sua falta, todos os dias. Você era parte da minha vida, porque simplesmente queria estar nela. Você era parte do meu sofá, da minha varanda e do quadro que aquela vista pincelava. Você era a melhor parte de mim. Eu estraguei tudo. Eu não te dei valor. Eu provavelmente não mereço o seu perdão. Mas se eu não te pedir para ser meu agora, vou me arrepender pelo resto da minha vida. Porque eu sei, no meu coração, que você é o único para mim.
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Eu precisei piscar algumas vezes enquanto fiquei de pé num salto, agradecendo por existir um chão sob os meus pés. Respondi por cima do ombro enquanto caminhava em direção à multidão efusiva que se encontrava rabiscando a lousa: "O Capitalismo é mesmo uma merda".
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Mergulhei no aglomerado humano e desejei ser pisoteada antes que o meu bom senso me traísse novamente.

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