domingo, junho 24, 2007

Cá Entre Nós

Cedo acordou e no jeans 38 entrou. Atravessou o corredor e percebeu que a casa precisava de cor. "Comprarei as flores eu mesma", pensou. Bateu a porta como se não fosse voltar - e até então, realmente não voltaria. Desceu os degrais apressadamente e ouviu algo cair no chão. Mas nada a faria voltar atrás. Nada.
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Enquanto esperava o ônibus e estalava dedos, costas e nuca, abriu a mão direita - o lembrete era claro, "Respire". Tomou o ônibus e sentou ao lado da janela. A beira da estrada era a única testemunha do seu desaparecimento. "Silenciosa estrada, eu espero", sorriu.
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Três horas e meia de viagem e ela só queria dormir. Nada mais. Mas quando se tem insônia você nunca realmente adormece. E você nunca realmente acorda. Buscou uma distração qualquer através da janela empoeirada. Nada, era só o asfalto de uma estrada que ela jamais havia visto, e ridiculamente como todas as outras.
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Pensou nos valiosos objetos que deixou para trás. Nas suas coleções, suas páginas e mais páginas de folhas espalhadas pelas gavetas. Podia ver todos aqueles metros quadrados vazios e em tantas ocasiões entulhados de pessoas luxentas, que só estavam lá para falar dos segredos dos outros, e desses outros aterrorizados pela possibilidade dos seus pecados explícitos. Ah, Sophie, sempre dando festas para encobrir o silêncio. Fechou os olhos e podia tocar aquelas paredes desgastadas e descoloridas... "As flores!".
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Levantou ofegante e acionou a campainha. Desceu no ponto seguinte de "lugar-nenhum". Imagine um deserto acutilado por uma estrada e cercado de ventos arenosos onde você é o que os atrai. Imagine e estará lá, também. Sophie sentou-se em um banco pouco convidativo, levou as mãos a cabeça e admitiu: "Estou perdida". Em seguida soltou uma risada que pareceu ecoar por todo aquele deserto.
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Foi então que ele apareceu: "Tá fugindo de quem?". Era um homem alto, jovem, apático e só tirava as mãos dos bolsos da jaqueta de couro para acender o próximo cigarro. Havia algo extremamente atraente nele, Sophie percebeu desde a primeira vez que lhe pôs os olhos.
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"O quê?", ela respondeu. "É, fugindo de quem?", ele insistiu enquanto acendia um cigarro. "O que o faz pensar que eu estaria fugindo de alguém?", ela replicou usando seu tom mais culto. "Tem um excesso de desespero na sua risada", ele esticou o pescoço e fitou-a enquanto aproximava-se. Ela, gaguejou umas sílabas e não chegou a dar uma resposta. Mas ficou pensando no ato de fugir, no desespero que sentia e principalmente: "Do quê eu fugi?". Ele a ouviu murmurar, ofereceu um cigarro, e: "Precisa de ajuda?". Ela esticou a mão e levou o cigarro a boca, ele acendeu. "Eu não tinha porquê fugir, não comprei as flores, não sei onde estou e nem como voltar, e aceitei um cigarro de um estranho" e ele "Pra ser sincero, acho que eu sou a sua menor preocupação".
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Os dois riram e conversaram por horas no deserto sem pêndulos. Até que um ônibus surgiu no horizonte. Seria aquele ou nada mais importaria além do momento, de estar ali com aquele estranho e da felicidade barata que sentia. "É isso, é o adeus" e ela "Acha que vamos nos ver de novo, algum dia?" e ele "Você sabe onde me encontrar, linda Sophie".
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Não, ela não sabia. Mas entendeu que, por destino ou acaso, ele estaria lá todas e quantas vezes ela precisasse. Sem promessas, sem endereços, sem testemunhas. No final, tudo o que resta é o que sabemos que vivemos e o que nos faz ser quem somos, mesmo que desconhecidos ou estranhos, ou perdidos.
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Sophie subiu no ônibus e acenou para ele. Ele acenou de volta, e da mesma maneira que surgiu, desapareceu. Chegando em sua pequena cidade ela comprou as flores. As pessoas, as ruas, as calçadas, tudo do mesmo jeito que ela havia deixado. Vez em quando, ela se perdia quase que propositalmente, pois sabia... Ele estaria lá.

quarta-feira, junho 13, 2007

Azo ao Derradeiro

Que não me condenem os amores e os amados, mas daquela singela delícia eu padeci. Talvez o cair em mim deva-se ao calçar e descalçar botas de outrem, o que não apaga o sofrimento titulado como suplício.
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Seu momento da verdade é efêmero e derrocado, no encaixar das palavras é inconsciente. Não culpo você. Seria desinteressante e monótono se não fosse exatamente como é. Sua mentira é contingente, e nem por isso menos apaixonante. Mas minhas mãos estão gastas de tanto pincelar seus delírios. De contornar seus lábios para os mesmos me arrebatarem e, então, me largarem o corpo e a alma para que o tempo me faça perecer com indiferença.
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Pobres deles! São meus livros que escrevem-se com tinta chorosa e borralheira, devido ao indecifrável mistério que recolhe em seus olhos.
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É o que digo, meu bem, arrependida antecipadamente. O tudo que sobra de você em mim, arrastando-se, precedido de ponto final, são os papéis avulsos sobre a mesa das noites incuráveis. E fim.
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Pois o meu fardo já é dádiva, e a sua dúvida é lamentável. Sua perda resume-se a nada, mas informo-lhe que este nada que lhe escreve encontrou num dia como outro qualquer um futuro e um amor certo para seguir. Mesmo que como os que foram e os virão, este esteja fadado ao triste fim.
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Por você e por mim, vou fazê-lo todas as boas lembranças que nós merecemos um dia.

domingo, junho 10, 2007

De tudo que aprendi nos discos

Houveram pêndulas e uma doce melodia de Elis. Ela acordou há anos, acordou no leito de sua avó, talvez. Explodiam bombas e gritos sufocados de um país quase perdido. "Os canhões têm sua beleza", pensou. Desceu as escadas do sobrado esverdeado e sombrio. Caminhou pelas ruas sangrentas de 1982. Nunca respirou tanto Brasil antes. Todas as imagens corriam pelas calçadas, e ela ali, vivendo o passado que gostaria de ter vivido.

Os meses passaram como nuances, até que chegaram ao fim do silêncio. O dia é 15, o mês é Janeiro, o ano é 1985 e a esperança tem nome - Neves. O verão deve ter sido o culpado do foco de luz naqueles sorrisos e tantos abraços em desconhecidos, das lágrimas caindo pelas perdas e pelo ganho de mais um dia enfim, e o turbilhão de alegria.
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Gente jovem reunida...

Ela acordou com Elis espalhando-se por debaixo de sua pele. Estava em seu quarto, com seus livros, seus discos e sua confortável realidade. Mas nada poderia apagar o passado, aqueles rostos e o som dos canhões. Suspirou descontente, já sentindo saudade de tudo que ela nem se quer viveu, nem se quer acordou para sonhar.

Elis lhe faz companhia enquanto ela tenta, ao menos, revolucionar seu próprio guarda-roupa.


"Já faz tempo
eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
essa lembrança é o quadro
que dói mais
Minha dor é perceber
que apesar de termos feito
tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos como nossos pais"

sábado, junho 02, 2007

Depois do Amanhecer

Despertou um pouco depois do mundo despertar lá fora. Sentia-se deslumbrante. Vestiu a camisa branca que deixou de cobri-la no quadril. Caminhou em passos quase divinos até a cozinha, preparou um café e tomou o primeiro gole encostada na pia. Atravessou as salas e parou em frente a lareira, ainda queimando em chamas frágeis. Lembrou-se da noite anterior e do que havia esquecido sob os lençóis. Voltou a cama em passos silenciosos e, ao deparar-se com o sol nascendo através da janela, notou que não estava sozinha. Pegou uma cadeira e levou-a para o centro do quarto pitoresco. Sentou-se, tomou mais um gole de café e sorriu, quase que despercebidamente.

Terminou o café e o corpo sobre a cama permanecia adormecido. Uma brisa de maio invadiu a cena pela fresta da janela entreaberta, arrepiando até os calcanhares, interrompendo a contemplação daquela felicidade tão branda, tão cinematográfica.

De repente, fixou o olhar dilatado na sutileza dos movimentos do corpo que, talvez também sentindo os sopros da estação, despertava lentamente. Ele começou a levantar-se quando a viu imóvel, hesitante. Sorriu em sua direção e com voz de sonho, pediu para que ela ocupasse o espaço vago na cama. Ela desfez-se da dúvida e encaixou-se no abraço confortante daquele sorriso doce.

O amor estava lá. Ela podia sentir em seus ossos.