terça-feira, julho 29, 2008

Molduras vazias

São tantas as preciosidades emolduradas entre as rachaduras do meu peito. Eu sei que eu não deveria me apegar tanto ao surreal, ao fictício... Mas me apego. Porque às vezes, não de forma pejorativa, mas milagrosamente, isso é tudo o que eu tenho. Os livros favoritos espremidos nas pequenas prateleiras, as coleções de arte espalhadas displicentemente pelo criado-mudo, os filmes escorregando pela madeira lisa da parte mais alta da escrivaninha. São coisas perecíveis, desnecessárias, você diria. Mas tê-las com exclusividade é um alívio tão grande. Elas, minhas preciosidades, sustentam as bases precárias do meu ser. Como se eu pudesse fazer das minhas costelas prateleiras seguras e da minha pele pálida uma vidraça blindada, nublada. Afinal, os grandes tesouros devem ser enterrados bem fundo e a superfície camuflada.
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Ah, o silêncio. O silêncio pode ser tão mais reconfortante do que as palavras imponderadas das pessoas. Pessoas podem ser tão inconsequentes, tão irresponsáveis, tão perigosas. Você já entendeu, não? Eu sempre faço muitos floreios antes de chegar a lugar nenhum. Sou incorrigível. Mas a verdade é que a grande maioria das pessoas, tão humanas e calorosas e com, ao menos, uma faísca de bondade dentro delas, são na realidade criaturas míticas com punhais nas mãos e veneno nos caninos. Se não te machucam fisicamente, certamente machucam a melhor parte de você, aquela parte que você se permitiu esconder. E o silêncio surge de novo, convidativo e suave demais para ser quebrado.
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Em dias como este, aparentemente ensolarados e casuais, eu me lembro que já pilotei aviões enormes, uma porção deles, em condições desfavoráveis. Lembro o quanto as pessoas neles se pressionavam sobre mim até que eu mergulhasse céu abaixo. Eu bati a 200 km/h e voltei pra casa, avariada. Mas nunca houveram outros sobreviventes. Teria eu os matado? Não, em dias como este tudo se esclarecia: ninguém nunca bateu o rosto na aspereza voraz do asfalto comigo. Todos sempre saltavam antes, de pára-quedas, e dançavam no céu, se afastando das nuvens até atingirem o chão do outro lado da fronteira que eu nunca pude cruzar.
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E eu me sinto bem por isso. Não houveram ossos quebrados nem grandes hemorragias - talvez alguns soluços nos primeiros dias, mas só. Enfim, em dias como este, quando o sol sonolento se deita radiante, eu vejo a minha sombra se alongando pela estrada e, apesar de nunca ter sido capaz de emoldurar rostos uma vez queridos entre as rachaduras do meu peito, eu me lembro de não parar de caminhar. E de tentar outra vez.

4 comentários:

Anônimo disse...

Querida escritora, fico emocionada de ler tão belas palavras, você é uma pessoa muito especial e sabe disso.
Amo tudo que escreve.

Anônimo disse...

Sem comentários.

IP disse...

quanto tempo não passo aqui! =)
Gabii, seu blog é ótimo, amiga!

adoooooro ler isso aqui
amo vocêê

Unknown disse...

Um dia um co-piloto te acompanhará para além da fronteira.