quinta-feira, maio 22, 2008

Epifania Pálida

Hoje eu acordei querendo pensar branco. Pensar em azulejo de cozinha. Azulejo de cozinha, coisa banal. Só queria pensar no azulejo branco, naquelas dezenas de azulejos brancos à minha frente. E pensar no café. Café quente, quente. Descendo pela minha garganta. Eu sentia o café quente descendo pela minha garganta e sentia quando ele encontrava morada no meu estômago. Batia no estômago e queimava, ardia! Mas quando a quentura do café fazia doer, outro gole vinha logo em seguida e queimava também. E eu me esquecia do que ardia por dentro, porque ardia por inteiro. E enquanto ardia, o azulejo permanecia branco. Branco e calmo - calmaria puritana corrompível! Sim. Corrompível. Pensava branco, era banal. Eu adorava pensar branco e sentir ferver. Adorava. Adorei.
.
Saí de casa sem vontade, não muito à vontade. Saí de casa e só. Mas não só. Saí de casa e a blusa subia, a saia descia. Roupa maldita e infernal! Quis ficar nua. Quis ficar do avesso. Eu quis ficar nua e do avesso e mostrar ao mundo como por dentro ardia e doía e queimava. Eu quis, mas foi um querer rápido de quem não sabe ousar. Eu quis, mas não pude. Não podia nem comigo, que dirá com o mundo. Ponderava. Ponderei.
.
Restaurante. Entrei no restaurante, tímida. A roupa incomodava e nas unhas dos pés o esmalte estava pela metade. Ninguém sabia, ninguém notava, mas me incomodava. Pensa branco, mulher. Pensa branco. Primeiro a salada. Enchi o prato de brócolis e um molho que odiei, mas não fazia mal: por dentro ardia e queimava, e do molho eu não gostava. Molho. Pra quê molho? Coisa banal. O maldito molho me estufava. É, estufava. Estufei.
.
Carro, rodovia, trânsito. Maldito trânsito! Acelera, acelera! Passa por cima que eu quero chegar do lado de lá! Mas não acelerava. Emputecida eu estava, mas não sou de demonstrar. Farol aberto. Caminhos abertos. Portas abertas. Tão bonito dizer "Minha porta estará sempre aberta pra você!", mesmo sendo mentira. Mentira, coisa tão banal. Tão divertida e ilegal. Normal. Tudo que eu gosto engorda, é ilegal ou imoral. Longe eu estava, viajava. Viajei.
.
"Quanto tempo! Me dá um abraço aqui". As escadas eu subi sem saber o que dizer. Mas disse. Estranho, não lembro o que disse. Perdoa, não era o que eu queria dizer. Ah, sentei. Tentei me mostrar à vontade. Mas não tinha vontade. Fuck! De repente surgiu vontade de dizer uma porção de palavrão. Por que eu não posso ser, de verdade, assim como me mostro, de bem com a vida? Pensa branco, pensa branco. Oh, motherfucker. Me distraíram. Na hora eu esqueci, mas obrigada. Obrigada por me distrair, eu estava para explodir. Obrigada. Me falaram, uma porção coisas aleatórias que eu nem precisei perguntar. Obrigada. Com ela eu fiquei extasiada. Porra, também sou assim! Obrigada. Agora eu posso sair por aí sendo eu mesma, obrigada. Não tenho regras, não tenho rédeas. Vou cavalgar! Não me procure, não me espere. Longe eu sempre vou estar. Meretriz no Alabama ou mulher-bomba em Bagdá. Não vou ficar. Não ficava. Não fiquei.
.
Hoje eu acordei querendo pensar branco. De um branco sem perturbações. Hoje eu vou dormir refletindo todas as perturbações do mundo, todas as cores. Perturbada, feliz e ainda extasiada. Eu mesma, eu só. Mas não só. Eu do meu lado, aventureira. Muito louca, de um louco banal. Velho mundo banal. Mas ainda meu, meu mundo banal. Do mundo eu quero o que vier. Quero viver. E viverei.

4 comentários:

Unknown disse...

Não tenho nada inteligente para falar. Aliás, perto do que você escreve, eu me sinto um analfabeto.

Parabéns. E viva.

Unknown disse...

Estava pensando, e pensando assim... Lembrei-me o que havia esquecido...

Você se parecia com... Com... Com...

Chico Buarque.

Você escreve como Chico Buarque.

Gabriela Rocha disse...

Azulejo branco é um tipo de terapia que funciona.

João de Oliveira disse...

Sumário rápido; deixou-me sem fôlego.